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A Psicanálise é Válida?

A cena do crime

Por Juan José Millás

Então, Freud. Acabo de terminar minha análise com uma psicanalista ortodoxa, seja lá o que signifique ortodoxa (e psicanalista). Chama-se Marta, como uma das irmãs de Lázaro, o ressuscitado, e tem o apelido de Lázaro, como o mesmíssimo ressuscitado. Marta Lárazo, portanto, 80 anos, muitos deles ouvindo. Quando deito no seu divã (que parece um pobre catafalco), o morto era eu. Cheguei com a fantasia de que me dissesse: “Levante e ande”. A realidade cria espontaneamente esse tipo de coincidência estranha.

No começo, eu preparava as sessões para compensar o preço. Hoje, direi isso, contarei aquilo. Enquanto fazia o dever de casa, estabelecia associações de primeiro nível atravessadas pelo pensamento consciente. Chamo de “associações de primeiro nível”, mas poderia chamá-las de álibis, porque seu objetivo era demonstrar que eu não havia estado na cena do crime no dia das atas. É assim que muitos romances são escritos, na base de álibis narrativos. E nem todos são realmente ruins, ainda que também não sejam bons. Digamos que as costuras ficam visíveis. Um bom romance, como uma boa análise, não pode mostrar as costuras.

As meias que os peregrinos do Caminho de Santiago utilizam são completamente lisas, pois as costuras produzem feridas nos pés e arruinam a viagem de iniciação. As costuras narrativas arruinam a viagem de iniciação do leitor de novelas, e também do autor, que, com uma boa associação, feita no momento oportuno, derruba todas as defesas. Às vezes, acontece na décima sessão de análise, ou no décimo capítulo do livro. Isso não quer dizer que o trabalho anterior tenha sido completamente inútil, mas tem que haver coragem de voltar ao começo e se desprender de todo o material dispensável.

Quase todas as vidas, mesmo as mais coerentes, neste primeiro nível associativo (o do álibi) estão cheias de costuras, inclusive de cicatrizes. Observando-se com certa distância, constrói-se a vida costurando (bem ou mal, esse é outro assunto) retalhos de várias naturezas e cores, como essas colchas étnicas (o que raios significa étnico), que nos agradam tanto pela ingenuidade, às vezes pelo mal gosto, um mal gosto (ou uma ingenuidade) que anula a vergonha de mostrá-las aos convidados depois do jantar, após retornar de Honduras ou da Guatemala.

Essas colchas são um exercício de associação livre, por isso, nos comovem até que começam a nos incomodar. O que há debaixo desses collages, cujas cicatrizes, que a princípio nos agradavam, agora nos cansam? Façamos uma suposição: pobreza. O que há, fequentemente, não é ingenuidade ou mal gosto, mas pobreza. Talvez fiquemos incomodados por causa disso. Estou fazendo uma bagunça, mas de propósito. Alcança-se o segundo nível da análise ou da novela juntando os pontos. Da vida também. Nesse segundo nível, não há costuras. É aqui que entendemos em toda a sua extensão a frase de Borges, que o azar é um modo de casualidade cujas leis ignoramos.

E, no fim, eu estive, sim, na cena do crime no do dia das atas, mas não era o assassino. Era o morto. Trata-se de uma possibilidade que eu nem havia considerado no primeiro nível. Então, percebe-se que na análise (e no romance), não temos que ir com os deveres de casa feitos, mas com eles desfeitos. Significa que deve-se deitar no divã (ou sentar-se à frente do computador) e, ao invés de começar pelo mais importante, começar pelo banal, pelo periférico. Pelo subúrbio. O significado está sempre no periférico. É um modo de dizer que a sala das máquinas da vida (e do romance) não se encontra onde se espera (isso é uma forma de delírio), mas onde não se espera. Chega-se a esse lugar pelo método freudiano de associação livre, a qual, com o tempo, percebe-se ser a menos livre das associações. Escrever um romance, portanto, assemelha-se muito a reler psicanaliticamente uma vida.

Quanto a Marta Lázaro, ela continua ouvindo. Não vamos nos ver novamente. Nunca. Ficamos nisso. E nisso estamos.

Não é ciência

Por Javier Sampedro

Sigmund Freud não era um homem modesto. Pensava que a posição da humanidade no mundo havia sido destronada principalmente três vezes na história do conhecimento. A primeira foi por Copérnico, que nos havia expulsado do centro da criação para deixar esse emprego geométrico ao Sol; a segundo foi a de Darwin, que nos havia expulsado do paraíso no qual Deus nos criou a sua imagem e semelhança. E a terceira, por ele mesmo, que nos havia deportado de nossa própria mente ao revelar que, na maioria das vezes, ela está ocupada por um exército de demônios dos quais nem mesmo somos conscientes. Copérnico, Darwin e Freud, assim se resume a história da ciência. Isso que é autoestima, doutor.

A psicanálise é uma ciência? Antes de responder, consideremos o que disse Freud de si mesmo, em 1900: “A verdade é que não sou um homem da ciência, absolutamente. Sou apenas um conquistador, um aventureiro”. Percebe-se que, por esse critério, a psicanálise não é uma ciência. E, por outros critérios, também não: não cumpre os requisitos mínimos, nem se propõe a fazer isso, muito menos serve de grande coisa para a ciência posterior. É provável tenha tido mais influência nas artes, de Dalí a Woody Allen, e com menção especial a Hitchcok e seu filme Marnie. Não à ciência. Mas isto é apenas a metade da história. Porque a ciência bebe de muitas fontes, e os pensadores visionários tiveram sua influência, às vezes crucial, no grande esquema das coisas. Bons exemplos são o efeito que a obra do reverendo e economista Robert Malthus teve na concepção da teoria da seleção natural de Darwin; a importância chave da leitura dos filósofos David Hume e Ernst Mach para levar Einstein a considerar a possibilidade de que o tempo poderia se dilatar; ou o gatilho que foi um livro filosófico de Erwin Schrödinger – O que é a vida? – no começo da biologia molecular. Nesse sentido, é possível que Freud tenha tido mais relevância do que a maioria dos neurocientistas de hoje em dia está disposta a lhe conceder.

O que talvez seja a sua descoberta central, a do componente inconsciente da mente, está confirmada atualmente acima de qualquer dúvida razoável. O que experimentamos como mente consciente representa uma minúscula parte da nossa vida diária. Não conseguiríamos nos levantar da cama – não vamos nem falar sobre cruzar a rua ou organizar nossa vida – sem uma atividade cerebral que seja propriedade intelectual de um enxame de processadores neuronais. Eles permanentemente analisam nossas percepções e também possuem um modelo interno de mundo, em grande parte inato, e em outra parte formado sem que tenhamos a menor ideia do que está acontecendo ali, dentro da nossa própria cabeça.

O subconsciente, como conceito abstrato, é uma predição correta de Freud. Mas a redescoberta moderna desse fenômeno não lhe deve nada. Sua materialização, ou sua revelação como algo empírico, ocorreu um século depois e de forma independente das reflexões, sem dúvida brilhantes, mas também exageradas, daquele psiquiatra.

Não está claro que Freud tenha infligido dano ao desenvolvimento das ciências da mente no século XX. É mais claro que esse dano tenha vindo do rechaço a Freud, particularmente nas instituições americanas. O grande neurologista Michael Gazzaniga reclamou que a psicologia havia desaparecido dos departamentos universitários. As pessoas – inclusive as que financiavam a pesquisa – consideravam-na uma palavra suja, e é muito provável que os excessos de Freud no começo do século, com sua franca propensão a atribuir ao sexo quase qualquer coisa, tenha muito a ver com isso naquela sociedade pacata e religiosa.

Em todo caso, se quiser submeter-se à psicanálise, importa muito pouco que não seja uma ciência. A única coisa que você precisa saber é se funciona. E, se acredita que funciona, irá em frente. Mas não se esqueça de consultar também um médico de verdade.

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Freud nos Tornou Heróis

Para escrever esse monumental volume com ares de biografia definitiva, Élisabeth Roudinesco (Paris, 1944) não quis acreditar “nem na lenda negra, nem na dourada”. Sigmund Freud en Son Temps et Dans le Nôtre (Sigmund Freud no seu tempo e no nosso, inédito no Brasil) parte da vontade de invalidar as condenações mais injustas, aquelas que costumam representar o pai da subjetividade moderna como um simples enganador, mas também de se contrapor às biografias de tom hagiográfico consagradas a esse personagem eternamente polêmico. Discípula de Deleuze, Foucault e Todorov, ex-integrante da Escola Freudiana fundada por Lacan e grande especialista na história da psicanálise, Roudinesco narra a vida de Freud como se fosse um palpitante romance ambientado na Viena da belle époque, avançando até seu exílio (e morte) em Londres nos primórdios da II Guerra Mundial. No centro dessa paisagem, a autora situa um homem que cometeu erros e enfrentou mil contradições, mas conseguiu criar uma doutrina “a meio caminho entre o saber racional e o pensamento selvagem, entre a medicina da alma e a técnica da confissão”, com a qual conseguiu transformar os mortais em heróis de tragédia grega.

Pergunta. Sua biografia aspira a desenhar um retrato justo e equânime de Freud. A senhora a escreveu em reação aos ataques dos últimos anos contra o personagem?

Resposta. O livro surge da necessidade de repensar o personagem. A última biografia séria sobre Freud, assinada por Peter Gay, saiu há 25 anos. Desde então, quase tudo o que se publicou foram condenações inflamadas a extremos inverossímeis, assinadas por personagens que, na verdade, não conheciam sua história. Como ocorre frequentemente com os personagens polêmicos, Freud acabou se tornando uma caricatura de si mesmo, envolto em numerosos rumores e mentiras. Achei que tinha chegado a hora de voltar a um equilíbrio.

P. No livro, a senhora escreve, por exemplo, que ele não foi “um burguês libidinoso, adepto dos bordéis e da masturbação”, como já se disse tantas vezes. De onde surgem esses mal-entendidos?

R. Em se tratando do fundador de uma doutrina sobre a sexualidade, achei imprescindível saber como havia sido sua vida sexual. Percebi que havia livros inteiros sobre dezenas de lendas das quais não há prova alguma. Quis deixar claro que nada demonstra que ele foi um homem incestuoso, nem de tendência fascista, nem um usurário que cobrava o equivalente a 450 euros por sessão, e que nem engravidou a cunhada nem abandonou suas irmãs aos nazistas. Tampouco foi um homem misógino, embora às vezes paternalista, sim.

P. Outro dos mitos que a senhora destrói é o do gênio incompreendido. A senhora sustenta que, na verdade, ele conseguiu fascinar os seus contemporâneos, “toda uma geração obcecada pela introspecção”.

R. Seu primeiro biógrafo oficial, Ernest Jones, quis apresentá-lo como um gênio solitário contraposto às massas, mas é uma imagem equivocada. É verdade que seus livros foram objeto de um aceso debate, mas não se deve confundir a polêmica com a incompreensão. Por exemplo, quando Elias Canetti visitou Viena, em 1920, disse que descobriu uma cidade inteira perseguindo o seu Édipo. Freud não gostava da polêmica, porque era um homem bastante autoritário e não suportava o conflito, embora às vezes ele próprio o provocasse. Mas é falso que fosse um solitário. Frequentemente trabalhou em equipe.

P. Seu livro inscreve Freud na ebulição intelectual da Viena do fim de século. A descoberta do subconsciente foi na realidade uma aventura coletiva?

R. É óbvio. Freud foi um personagem muito vienense, inscrito em uma época plenamente europeia, na qual o continente se interrogava sobre seus mitos institucionais para renovar sua identidade, uma dinâmica muito compatível com a de Freud. Contemporâneo da emergência do sionismo e do primeiro feminismo, sua contribuição é parte de um grande movimento de emancipação. Começou querendo curar a neurose, mas acabou provocando uma liberação ainda maior. Mas também é verdade, como disse Stefan Zweig, que a burguesia da Belle Époque estava tão concentrada na introspecção que não soube antever a I Guerra Mundial, nem a irrupção do nacionalismo, nem a miséria do povo que a rodeava.

P. Foi também um homem cheio de paradoxos: pai de uma revolução que conduziu à modernidade, mas politicamente conservador; de forte cultura judaica, mas ateu; e libertador das pulsões sexuais, mas partidário da abstinência depois dos 40 anos. Freud era incoerente?

R. Tudo tem uma explicação. A abstinência, a partir da qual formulou a teoria da sublimação, explica-se por seu desejo e o de sua esposa, Martha Bernays, de não terem mais filhos. Poderiam ter usado anticoncepcionais, mas ele não tinha suficiente ímpeto sexual e não sabia nem utilizá-los. Freud não foi um homem nada sedutor. Não era um puritano, já que advogou por liberar as pulsões sexuais. Mas tampouco um libertário: acreditava que a pessoa deveria controlá-las. No plano político, eu o definiria como um conservador ilustrado, assim como Zweig. Foi um homem apanhado no turbilhão da revolução comunista, na qual nunca acreditou, e da emergência do fascismo. Perante essa situação, apostou em conservar as instituições existentes, acreditando que a velha Áustria ainda poderia se salvar.

P. Freud concebeu a psicanálise como uma doutrina apolítica, que deveria se manter à margem de qualquer militância. O que a senhora, acostumada a intervir frequentemente no debate público a partir de posições esquerdistas, acha disso?

R. De fato, Freud foi contrário ao comprometimento político e apostou numa espécie de neutralidade. Para ele, a psicanálise já era compromisso suficiente. Eu estou em total desacordo com essa parte. Se a psicanálise parte do estudo dos vínculos familiares, como pode o psicanalista ficar à margem do debate sobre o casamento homossexual ou a gestação sub-rogada, para citar dois exemplos? Eu há muito tempo sou favorável a ambos, mas muitos colegas meus se expressam em sentido oposto ao meu. Não sei se você sabe que 70% dos psicanalistas franceses eram contra o casamento homossexual…

P. Como explica o conservadorismo da sua classe?

R. Acredito que, ao limitar o papel do psicanalista ao de mero observador, Freud terminou originando uma classe profissional reacionária. Não podemos nos deter em modelos varridos pela corrente da história, nem projetar no presente modelos de um passado remoto. Quando um psicanalista me diz que a família homoparental é contrária ao complexo de Édipo, eu respondo: “Pois mudemos o complexo de Édipo!”.

P. Você define a psicanálise como “uma epopeia sobre as origens, uma canção de gesta, com suas fábulas, mitos e imagens”. Ou seja, a invenção da subjetividade moderna acabou por transformar o sujeito em uma espécie de herói.

R. Exato. Esse foi o grande trabalho de Freud: nos transformou em heróis de nossas vidas. Pense que, um século atrás, davam poções a um doente, enfiavam-no em um sanatório e o tratavam como louco. Freud, por sua vez, lhes dizia: “Você é Édipo”. Os psicanalistas já não dizem isso, mas algo parecido: “Cuide de si mesmo. Não deixe que o tratem como um sujeito que consome medicamentos passivamente”. Essa teoria do sujeito não existe no behaviorismo [a outra principal escola de psicologia, oposta à psicanálise, que estuda o comportamento e a conduta objetiva, sem acreditar na existência de um subconsciente], que é uma técnica bastante estúpida, embora às vezes funcione. Na minha opinião, cada um deve cuidar da sua história pessoal. Quem não é capaz de verbalizá-la, por um mínimo que seja, está condenado à estupidez.

P. Apesar dos seus efeitos na percepção da interioridade, muitos autores, como o filósofo Michel Onfray e o historiador Mikkel Borch-Jacobsen, continuam definindo a psicanálise como uma fraude. Por que é tão difícil aceitar sua existência?

R. É uma teoria muito contundente, que não é fácil de digerir. Na primeira metade do século passado, ela era condenada em nome da moral. Hoje, o motivo apela ao que alguns chamam de ciência. Atualmente, a psiquiatria está desaparecendo, e os neurologistas se transformaram em simples distribuidores de remédios. Isso ocorre porque tratar um paciente com um remédio padronizado é menos custoso do que oferecer um tratamento personalizado e que permita sua evolução. Nesse contexto, é normal que a psicanálise e sua maneira de entender as doenças da alma incomodem. O problema é que as pessoas já estão fartas de tomar remédios. Se suprimirmos uma doutrina racional como a psicanálise como possível solução, essa gente que já não aguenta mais medicamentos terminará recorrendo aos feiticeiros dos remédios paralelos…

P. A psicanálise precisa mudar para sobreviver?

R. Sim. Deve aspirar a ocupar o lugar que os behavioristas conquistaram. Para isso, terá que se transformar. As pessoas já não querem deitar em um divã três vezes por semana durante os próximos 20 anos. A psicanálise deve evoluir no ritmo imposto pelo mundo. Deverá passar a apostar em tratamentos mais curtos, durante os quais se interaja com o paciente cara a cara, e não no divã. Deverá aceitar também tratar qualquer pessoa, assim como um médico em um hospital. As novas gerações já estão praticando uma mudança. O problema é que fazem apenas estudos de psicologia e não de ciências humanas, motivo pelo qual os psicanalistas jovens estão menos bem formados e são menos cultos. Para ser psicanalista não é preciso apenas ser inteligente, mas também culto.

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O Homem que deu Significado aos Sonhos

Sigmund Freud, o pai da psicanálise, nasceu há exatos 160 anos. E seu nascimento não foi esquecido pelo Google, que o homenageou com um doodle nesta sexta-feira. Somos como um iceberg, do qual só se vê a ponta. Tudo o que está debaixo da água é o nosso subconsciente, um amontoado de desejos e traumas que reprimimos, mas que dão forma aos nossos sonhos. E foi o neurologista quem criou essa teoria, hoje tão aceita e, com isso, mudou a nossa forma de pensar, com conceitos como narcisismo, pulsão de morte e Complexo de Édipo. Foi uma das figuras mais polêmicas e influentes do século XX.

Sigmund Freud nasceu em 1856 em uma cidade da República Tcheca, dentro de uma família judia que vivia grandes dificuldades econômicas, o que não lhe impediu de ingressar na Universidade de Viena, capital aonde chegou aos três anos de idade e onde viveu a maior parte de sua vida. Depois de se diplomar como médico em 1881, Freud focou seus estudos na pesquisa das propriedades anestésicas da cocaína, o que gerou a sua primeira polêmica, já que, segundo se depreende de algumas correspondências, ele acabou por provocar a dependência de um amigo que pretendia curar (e até mesmo a sua própria).

Depois de se casar com Martha Bernays, o amor de sua vida, Sigmund Freud abriu, em 1886, uma clínica particular, onde adotou o uso da hipnose no tratamento da histeria tal como havia estudado em Paris (França) e incorporou o método catártico de seu mentor Josef Breuer. Pouco a pouco, porém, acabou por abandoná-lo, substituindo-o pela associação livre e a interpretação dos sonhos, germe de uma nova maneira de entender o homem: a psicanálise.

O livro A Interpretação dos Sonhos, publicado em 1899, é a obra mais importante e mais conhecida de Freud. Nela se estabelecem as bases da psicanálise, um método terapêutico ao qual foram aderindo aos poucos vários adeptos, apesar da desconfiança que despertou em uma parte da comunidade científica, que o via como uma espécie de filósofo que repensou a natureza humana e ajudou a quebrar tabus –sobretudo sexuais–, mas não como médico. Seu objetivo era trazer para o consciente (a ponta do iceberg) todos esses pensamentos, sentimentos e desejos reprimidos do subconsciente (aquilo que está sob a água).

Além de criar seus conceitos revolucionários como inconsciente, desejo inconsciente e repressão, Sigmund Freud dividiu a mente humana em três partes: id, ego e superego. Também definiu o Eros, ou pulsão de vida, e o Tanatos, ou pulsão de morte. E desenvolveu um método psicossexual que – embora criticado por relacionar a sexualidade a conceitos como incesto, perversão e distúrbios mentais— ensejou teorias como a do Complexo de Édipo e derrubou tabus em uma sociedade ainda adoecida e reprimida.

Mesmo com ele tendo sido questionado por alguns de seus colegas, a influência de Sigmund Freud na filosofia, na política, na linguagem e na arte do século XX é inquestionável. Sem ele não seria possível entender as obras de artistas como André Breton e Salvador Dalí, ou de cineastas como Luis Buñuel, Alfred Hitchcock e Woody Allen, que, com o seu cinema, criou a imagem que temos da psicanálise: um homem contando a sua vida ao seu terapeuta no conforto de um divã.

Sigmund Freud foi uma figura controvertida até o último dia de sua vida. Em 1938, declarado inimigo do Terceiro Reich, teve de fugir para Londres. Seus livros foram queimados publicamente e suas irmãs (ele tinha cinco) morreram em campos de concentração. Ele faleceu um ano depois, vítima de um câncer do palato provocado pela dependência do tabaco. Seu médico lhe administrou três doses de morfina, e ele então submergiu, para sempre, no mar de seu próprio subconsciente. Uma pequena cratera na lua foi batizada com o seu nome.

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Violência e Depressão, a Ponta do Iceberg

Tragédias, como a do atirador de Campinas, revelam escalada de um mal estar social que o país não está dando conta, afirmam especialistas. Doenças mentais são amplificadas pela prolongada crise política e econômica.

No início da semana que passou, um homem entrou na Catedral de Campinas (100 quilômetros de São Paulo) e abriu fogo contra os fiéis que rezavam a missa do horário do almoço. Três pessoas ficaram feridas e cinco morreram, dentre elas, o próprio atirador, que se suicidou após realizar os disparos. Ainda não há informações sobre a motivação do crime, que embora seja chocante, soma-se a uma lista cada vez maior de tragédias em todo o mundo.

O atirador, Euler Fernando Grandolpho, tinha 49 anos e nenhum antecedente criminal. Levou às últimas consequências sentimentos que podem ter sido movidos por ódio, angústia, ansiedade e pela depressão, doença da qual sofria, segundo parentes relataram à imprensa. Se o diagnóstico for confirmado, Grandolpho fazia parte dos quase 6% da população brasileira que sofre da enfermidade, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). Em nenhum país da América Latina vive tanta gente deprimida como aqui. E o suicídio, que pode vir a ser cometido também em decorrência da doença, vem na mesma escalada. Em 2016, data dos dados mais recentes do Ministério da Saúde, foram registradas 11.433 mortes por suicídio, 2,3% a mais que no ano anterior. E esse número, segundo o Ministério, tende a ser ainda maior, devido à subnotificação dos registros.

Mas por que, afinal, estamos sofrendo tanto? “Tenho assistido a um aumento violento de suicidas chegando até o meu consultório”, afirma a  terapeuta floral Cristiane Boog, que desenvolve técnicas para o enfrentamento de medos. “Houve épocas em que eu cheguei a atender quatro casos por semana. Isso era muito raro”, diz. Ela explica que, além dos fatores particulares, como traumas individuais, há um diagnóstico que é comum para muitos dos casos suicidas. “[Carl] Jung dizia que as pessoas adoecem pela falta de um sentido maior na vida, por levar a vida no automático… A pessoa fica presa a cobranças da sociedade, a padrões, a expectativas dos outros que acaba gerando uma falta de contato com a própria essência”, afirma ela. “Esse vazio é insuportável para o ser humano e eu sinto que muito da tendência suicida vem dessa falta básica”.

O psiquiatra Rodrigo Leite, coordenador dos Ambulatórios do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da USP, explica que há fatores sociais que, ao longo da história humana, sempre foram associados a transtornos mentais, como situações de guerra, crises socioeconômicas e situações de colapso social. Mas, além disso – e dos fatores particulares, como apontou Cristiane Boog – o especialista menciona questões ligadas à atualidade. “Somados a esses fatores fixos, ainda temos os adicionais do momento, que, agora, são o avanço das tecnologias, que causam uma sobrecarga sensorial, o enfraquecimento de vínculos sociais e a exacerbação do individualismo”, diz.

Embora os fatores “fixos” e os “adicionais” não necessariamente andem juntos, neste momento eles estão de mãos dadas no divã brasileiro. O país atravessa uma crise política e econômica que já perdura por alguns anos e também sofre as consequências do avanço da tecnologia que, segundo os especialistas, contribuiu para a ruptura de muitos vínculos afetivos. “Quantos de nós perdemos amigos, saímos de grupos de WhatsApp, por conflitos de opiniões?”, questiona Leite. “Temos um cérebro analógico, com uma sobrecarga de informação digital. E isso dá margem para interpretar informações de maneira muito rasa”, afirma ele. “A pessoa chega a uma conclusão e você não consegue mais discutir com ela, e vamos caminhando para um autoritarismo, onde não respeitamos as outras opiniões”.

Essa intolerância pode ocorrer no mundo real ou no mundo virtual. Mas a consequente ruptura é sempre real, e é outro fator que engrandece a lista dos motivos para estarmos deprimidos e estressados. A psiquiatra e psicóloga Ana Maria Rossi, presidente da International Stress Management Association do Brasil (ISMAbr), faz esse diagnóstico. “Estamos em um momento de baixíssima tolerância no Brasil. Eu vi nos meus pacientes o aumento dos casos de agressão e depressão, as pessoas brigando com familiares e depois se sentindo miseráveis”, diz. Para o psicanalista Daniel Guimarães, da Clínica Pública de Psicanálise, muitas das rupturas ocorridas durante a eleição não terão reparação. “E teremos de saber lidar com esse desconforto”, diz. “É um momento de rompimentos mesmo. E não sabemos ainda a profundidade desses rompimentos e nem para onde eles apontam”.

A psicanalista Luciana Saddi, diretora da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, também diz que os vínculos perdidos e o ódio vivenciado durante a eleição permanecerão mesmo passado o pleito. E a saúde mental está em risco enquanto esse clima perdurar. “A crise social também afeta a saúde mental”, afirma. Mas, para ela, o aumento dos casos de depressão, de maneira geral, está ligado justamente à repressão dos sentimentos em relação ao outro. “A civilização tem como prerrogativa inibir a agressão. Ou seja, quanto mais civilizados formos, mais vamos inibir a nossa agressividade contra o outro e mais vamos aumentar contra nós mesmos”, diz. “Acredito que o aumento da depressão está ligado ao fato de que o homem está cada vez mais rigoroso consigo mesmo. E o ódio que ele permitia sentir contra o outro, agora se volta contra ele e ele nem sabe”.

Efeito borboleta social

Nos últimos três anos, três milhões de brasileiros deixaram seus planos de saúde privados por falta de condições de arcar com os custos. E muitos deles somaram-se a uma massa de 140 milhões de pessoas – ou 70% da população – que dependem exclusivamente do SUS para os atendimentos de saúde. O psiquiatra Rodrigo Leite, que também é mestre em políticas públicas e serviços mentais pela Universidade Nova de Lisboa, alerta para o descompasso entre o aumento na demanda e os investimentos na saúde pública. “Existe um hiato entre as mudanças sociais e o quanto as políticas públicas conseguem acompanhar esse passo da sociedade”, diz. “Nossa percepção é que essa crise na saúde mental é ainda maior porque os serviços não estão acompanhando as transformações”.

Ele explica que a ausência de Estado gera um efeito cascata que ele classifica como “efeito borboleta social”, ou um efeito de propagação. “Quando um jovem negro leva um tapa na cara de um policial no Capão Redondo, isso pode virar um latrocínio nos Jardins”, diz. Em outras palavras, vítimas da violência, da humilhação e do descaso público, marginalizadas pela sociedade, podem se transformar em potenciais atores de mais violência. “Ou seja, se um lado da sociedade não está bem, isso se cascateia para o outro lado”, explica.

Para Leite, a tragédia ocorrida nesta semana em Campinas está compreendida nesse “efeito borboleta”. “O que aconteceu em Campinas é a ponta do iceberg de uma tragédia social em curso que as políticas públicas não estão dando conta de atender e o privado também não”, diz. Ana Maria Rossi completa: a melhora da nossa saúde mental depende, diretamente, da melhoria da situação do país.“Nós precisamos sentir que existe mais estabilidade econômica, política e jurídica para que nosso ânimo volte ao normal” diz. “Não importa quem seja o presidente, precisamos de estabilidade”.

Algumas iniciativas buscam amenizar o quadro de abandono social e psíquico desenhado pelos especialistas. Uma delas é a Clínica Pública de Psicanálise, criada em 2016 na Vila Itororó, um imóvel histórico na região central de São Paulo. O prédio foi decretado de utilidade pública em 2006, quando começou a ser desapropriado pelas famílias que ali viviam há anos. Os 17 profissionais que trabalham voluntariamente no local atendem desde pessoas que perderam poder aquisitivo nos últimos anos, mas queriam continuar fazendo terapia, até pacientes que dependem de ter dinheiro para o ônibus para poder comparecer às sessões, como explica o psicanalista Daniel Guimarães. “Muitos são ex-moradores da Vila Itororó. É uma clínica para atender pessoas que são vítimas da violência do Estado e do mercado”.

Um dos objetivos da clínica é facilitar o acesso ao cuidado mental. E essa acessibilidade é construída também por meio da formação. Guimarães explica que um dos planos é formar novos analistas oriundos das camadas mais populares, tornando assim o cuidado com a saúde mental algo mais popular e menos elitizado. “É muito interessante que agora a ideia de procura de espaços do cuidado emocional e afetivo seja uma possibilidade”, diz. “Em outros momentos da história do Brasil não era”.

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A Psicanálise no Divã, Analistas ou Medicamentos

Cada vez mais pessoas estão trocando o analista por medicamentos, novos tratamentos psicológicos e terapias alternativas para aliviar o sofrimento da mente. Será que as idéias de Freud estão morrendo?

Freud explica” é um dos grandes clichês do século XX. Mesmo quem nunca leu sequer um parágrafo dos mais de 20 livros do fundador da psicanálise já esbarrou com termos como complexo de Édipo, desejos reprimidos, inveja do pênis, símbolos fálicos, ego, id e superego. A figura do gênio de cabelos grisalhos, barba bem aparada, com seu sugestivo charuto e um olhar que parece penetrar nas profundezas da alma humana faz parte do inconsciente de nossa época. Aliás, a própria noção do inconsciente está para Freud como a Teoria da Relatividade para Einstein ou a evolução para Darwin. Ainda hoje, pessoas em todo o mundo se submetem ao mesmo ritual que ele desenvolveu para tratar dos males da mente: vão a um especialista, sentam-se num móvel acolchoado e começam a falar.

Apesar de tão popular, a psicanálise (nome que Freud deu a esse método, em 1896), nunca foi alvo de tantas críticas como nos últimos anos. Neurologistas e estudiosos da mente dizem que boa parte dela está mais próxima da ficção do que da ciência e que as obras de Freud hoje não passam de boa literatura (ele escrevia muito bem). Psicólogos sociais acusam a ênfase dada por Freud às relações familiares e à sexualidade como modelos limitados de interpretação do sofrimento psíquico, propondo novos caminhos para cuidar dos problemas existenciais. Contribuindo para esvaziar ainda mais os consultórios dos psicanalistas, milhares de pessoas procuram alívio para o sofrimento da alma em psicoterapias não-freudianas e até mesmo na filosofia oriental e na redescoberta da própria espiritualidade.

“Só quem tem pouco bom senso levaria hoje a sério a maioria das idéias de Freud”, diz a psicóloga Sophie, professora da Faculdade Simmons, em Boston, nos Estados Unidos. Sua declaração seria mais uma dentre o coro de críticos de Freud, não fosse por um detalhe importante. O último nome de Sophie é Freud. Isso mesmo: a neta do fundador da psicanálise disse à Super que é bastante cética diante das teorias do avô e acha que pouca coisa de suas teses ainda pode ser considerada.

Não é a primeira vez que Sophie faz críticas à psicanálise. Em 1995, ela participou, junto com diversos críticos de Freud, nos Estados Unidos, de uma manifestação contra o tom “adulatório” de uma exposição sobre seu avô que seria inaugurada naquele ano, na Biblioteca do Congresso Americano. Além de ser adiada para 1998, quando finalmente foi aberta, a exposição incorporou uma “visão mais crítica de Freud” e foi um indício de que os ataques à psicanálise não iriam parar por aí.

Poucos desses críticos deixam de reconhecer, é claro, a genialidade e o pioneirismo do pensador austríaco. Mas isso não os impede de atingir em cheio a psicanálise ao contestarem sua validade atual como tratamento clínico da mente. “Não há nenhuma prova de que os seus resultados sejam eficazes”, diz a neta de Freud. “A psicanálise se tornou uma espécie de religião.” Como o tratamento pode ser prolongado por anos, exigindo sessões semanais, ela ainda teria o inconveniente de ser uma religião muito cara.

Afinal, vale ou não a pena pagar por anos de análise? Os psicanalistas afirmam que sim e rebatem as críticas dizendo que elas são típicas de uma época em que as pessoas querem resolver seus problemas existenciais na farmácia, como se fosse possível encontrar a felicidade em cartelas de antidepressivos, como o Prozac. O problema com as drogas é que elas atuariam nos sintomas e não nas causas do sofrimento psíquico. Passado o efeito do medicamento, todas as insatisfações voltariam porque seus nós não teriam sido desatados. “Ninguém tem dúvidas de que muitas das novas drogas podem aliviar os sintomas de diversas doenças da mente”, diz Peter Gay, psicanalista, historiador, professor emérito da Universidade de Yale e autor da famosa biografia Freud: Uma Vida para o Nosso Tempo. “Mas elas não podem curar ninguém. A técnica do tratamento pela fala, criação de Freud, é e permanecerá essencial.” (Veja as principais idéias de Freud e suas críticas na página ao lado.)

Talvez seja cedo para afirmar se, no futuro, Freud será mais lembrado como o médico que inventou um tratamento revolucionário para as doenças mentais ou como um dos 26 autores mais importantes da literatura, na seleção que o crítico literário Harold Bloom fez em seu livro O Cânone Ocidental.

O próprio Freud, em alguns de seus textos, aventou a possibilidade de que um dia a psicanálise talvez fosse deixada para trás, substituída por um novo tratamento. A única coisa certa é que, para continuar mantendo seu grau de influência, ela terá que responder aos seus principais concorrentes do início do século XXI.

Freud x neurociência

Pouca gente sabe, mas antes de criar a psicanálise o próprio Freud passou anos de sua vida tentando entender o funcionamento da fisiologia do cérebro e como ele poderia desencadear os distúrbios mentais, igualzinho a qualquer neurocientista moderno. Entre 1882 e 1885, Freud trabalhou com pacientes que sofriam de lesão cerebral no Hospital Geral de Viena, já tendo pesquisado o sistema nervoso de lampréias e lagostins. Então por que boa parte dos neurocientistas atuais vive criticando suas idéias?

“Não se trata de uma crítica a Freud, trata-se de reconhecer que os modelos da psicanálise não se encaixam com o que sabemos hoje sobre o funcionamento do cérebro”, diz o neurocientista Ivan Izquierdo, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. “Sabe-se hoje que doenças como a esquizofrenia, que no passado era relacionada a um trauma psicológico, têm origem orgânica.” Izquierdo diz que diversos estudos revelam que os pacientes esquizofrênicos têm um déficit anatômico na região do nosso cérebro que fica logo abaixo da testa, conhecida como córtex pré-frontal.

Esse déficit geraria uma falha na chamada memória de trabalho (a memória usada para nos orientar no aqui e agora), fazendo com que o esquizofrênico perceba a realidade como alucinação. “Para controlar os mecanismos que disparam essas alucinações, a medicação é fundamental”, diz o neurocientista. “Utilizar o modelo freudiano para tentar curar alguns desses distúrbios pode ser tão inútil quanto tentar encontrar um erro num programa de computador quando a base do problema está na máquina.”

Máquina? Não seria uma simplificação comparar um homem a um computador, traçando uma linha clara entre um hardware, formado pelo cérebro e suas interações químicas, e um software, constituído por nossas emoções, pensamentos e experiências de vida? Izquierdo diz que é claro que a divisão não é tão simples e há uma série de interações entre as predisposições orgânicas e história de vida. “Se você tem uma tendência para a depressão, por exemplo, é óbvio que ela vai estar associada a algumas passagens de sua vida”, diz Izquierdo. “Mas a predisposição já estava lá, enquanto outras pessoas, com experiências semelhantes, reagem de outra forma apenas por não terem a mesma tendência.”

Ele diz que isso não significa que um evento como a perda de uma pessoa querida ou um trauma de guerra não possa causar um distúrbio numa pessoa normal. “É claro que pode”, diz Izquierdo. Mas mesmo nesses casos, conhecidos como síndrome pós-trauma, ele diz que a psicanálise freudiana nem sempre é útil e às vezes pode até ter efeito negativo. “Trabalhar com a memória nesses casos pode despertar sensações terríveis que agravam o estado do paciente”, diz.

“É claro que é fundamental fazer algum tratamento psicológico, mas outras terapias não-freudianas podem ser mais indicadas.”

Apesar de reconhecer a importância do legado de Freud com a criação do tratamento pela fala – disseminado em quase todas as terapias –, Izquierdo diz que usar conceitos como o de complexo de Édipo para entender a psique é quase tão gratuito como era, no tempo de Jesus, dizer que um epilético estava possuído pelo demônio. “A psicanálise está cheia de metáforas que podem até ser úteis para descrever algumas condições humanas”, diz Izquierdo. “Mas útil não quer dizer verdadeiro.” Então como explicar o depoimento de milhares de pessoas que atestam que a análise freudiana mudou suas vidas para melhor?

O neurocientista Renato Sabattini, da Unicamp, diz ter a resposta para essa pergunta: “A psicanálise funciona, sim. Mas não pela validade de suas teorias, e sim pelo efeito placebo que a fala tem no tratamento de distúrbios da mente”. Sabattini diz que em casos de depressão e ansiedade esse efeito pode ter resultados favoráveis de até 40%.

Já em casos em que a origem orgânica seria mais evidente, como na esquizofrenia, os resultados seriam menores, cerca de 20%. “Não se trata de negar o óbvio benefício que ouvir o paciente pode trazer”, diz

Sabattini. “Trata-se de reconhecer que não há nenhuma base científica que sustente a psicanálise.”

Como exemplo, ele cita o papel que Freud deu aos sonhos em seu livro

A Interpretação dos Sonhos, um marco na história da psicanálise, escrito em 1900. Para Freud, o conteúdo do sonho, por mais absurdo que possa parecer ao senso comum, estaria repleto de desejos inconscientes que poderiam ser identificados pela interpretação do analista. “Se você sonhasse com alguns objetos fálicos, isso poderia significar desejos sexuais implícitos, o que era típico da sociedade em que ele viveu”, diz Sabattini. “Hoje, se um sujeito passa muito tempo sem um contato sexual, ele não sonha com objetos que lembram órgãos sexuais. Ele sonha com sexo explícito.” Sabattini diz que a neurociência pode mostrar apenas que o sonho funciona como uma espécie de organizador do cérebro e diz que animais que são privados de entrar no estado de sono REM, responsável pelo sonho, passam a ter inúmeros problemas, como déficit de aprendizado.

“É claro que, se você procurar, pode encontrar no seu sonho padrões e significados para o que quiser”, diz Sabattini. “Da mesma forma que você pode dar inúmeros significados a um quadro abstrato numa exposição de arte moderna.” Mas isso é ciência?

“Não”, responde Adolf Grünbaum, considerado um dos mais ferrenhos críticos da psicanálise no mundo. Professor de Psiquiatria e chefe do departamento de Filosofia da Ciência da Universidade de Pittsburgh, Estados Unidos, ele espinafra a validade do método inventado por Freud em seus livros The Foundations of Psychoanalysis: A Philosophical Critique (Os Fundamentos da Psicanálise: Uma Crítica Filosófica, inédito no Brasil) e Validation in the Clinical Theory of Psychoanalysis (Validade na Teoria Clínica da Psicanálise, também inédito aqui). “Está claro que ela já está morrendo em países como a Alemanha, a Suíça e os Estados Unidos”, diz Grünbaum. “Talvez ela tenha uma sobrevida maior na França, Itália e Argentina, mas basta observar o decrescente número de psiquiatras que estudam para ser psicanalistas para constatar sua decadência.” Ele diz que essa tendência deve se manter graças a três fatores.

O primeiro seria a falta de evidências de que o tratamento psicanalítico tem uma boa relação custo/benefício – para ele, há tratamentos mais rápidos e baratos, e ninguém conseguiu provar que a psicanálise é mais eficiente do que esses tratamentos. A segunda razão seria a ascensão dos novos medicamentos. Aliadas a psicoterapias de curto prazo, as novas drogas estariam tomando o lugar da psicanálise.

E o terceiro e mais controverso fator seria a falta de critérios para o credenciamento de psicanalistas, ao menos nos Estados Unidos. “Há todo um sistema corrompido e arbitrário, já que não existem pré-requisitos sólidos para alguém ser considerado um psicanalista”, diz o psiquiatra.

Para Grünbaum, um dos traços marcantes que comprovaria a falta de fundamento científico da psicanálise estaria em sua quase infinita capacidade para rebater qualquer dado que contradiga suas teorias. Costuma-se ilustrar esse traço com a história de um analista que, baseado nas palavras de um adolescente, interpreta que o garoto apresenta uma clássica síndrome de Édipo: quer matar seu pai e copular com sua mãe. Se o rapaz concordar com a interpretação, ótimo. Se a rejeitar, sua negação é uma forte prova de que ele está reprimindo seus impulsos. Essa estratégia é conhecida pelos detratores da psicanálise como “cara eu ganho, coroa você perde”, e teria sido usada por Freud e seus seguidores. “Não é à toa que nas principais universidades americanas as idéias de Freud estão saindo dos departamentos de medicina e psicologia e sobrevivem apenas nos cursos de literatura.”

Será mesmo? Pelo menos no Departamento de Neurologia da Faculdade de Medicina da Universidade de Iowa, há um neurocientista bem mais cauteloso em suas críticas à psicanálise. Conhecido no Brasil por seus livros O Erro de Descartes e O Mistério da Consciência, o neurologista António Damásio diz que, mesmo reconhecendo as limitações da psicanálise, é preciso admitir que Freud estava correto em vários aspectos sobre o cérebro. “O problema central da psicanálise não está em Freud”, diz Damásio. “Está num imenso número de psicanalistas que se fecharam ao mundo exterior, apegando-se a teorias como se fossem dogmas religiosos.”

Freud X Psicologia Social

Não deixa de ser uma ironia, mas enquanto a neurociência critica o método freudiano pela falta de objetividade, uma corrente da psicologia contemporânea diz que a psicanálise não pode ajudar o homem moderno exatamente pelo motivo oposto: ela estaria excessivamente fechada num modelo de indivíduo do tempo de Freud, não levando em consideração que há uma infinidade de outras causas que podem ser responsáveis pelos distúrbios mentais.

Ou seja: uma acusação é de falta de solidez científica; a outra é de excesso de rigidez e cientificismo na hora de lidar com o comportamento humano. “Não adianta ficar procurando a origem do sofrimento psíquico apenas no inconsciente, como faz a psicanálise, ou numa origem orgânica, como fazem os neurocientistas”, diz Luis Antônio Baptista, professor de Psicologia Social da Universidade Federal Fluminense (UFF). “Há outros fatores no mundo real, como viver numa cidade violenta ou o medo de perder o emprego, que podem, por exemplo, levar alguém à depressão.”

O que Luis Antônio e outros psicólogos sociais criticam no método psicanalítico é a ênfase de que existe uma clara fronteira entre o indivíduo, de um lado, e o mundo externo, do outro. Ou seja: sabe essa idéia que você tem de que de há um universo só seu, bem separado da vida social? Pois é. Para esses psicólogos, essa idéia de indivíduo não tem nada de natural. “Ela é um produto de uma época e, como tal, muda de tempo em tempo e pode até mesmo variar de cultura para cultura”, diz Silvia Carvalho, professora de psicologia social da UFF. Seria inútil, por exemplo, tentar adaptar alguns conceitos psicanalíticos para um membro da comunidade ianomâmi, que teria uma visão de indivíduo completamente diferente de quem vive numa sociedade capitalista competitiva. Da mesma forma, conceitos como o complexo de Édipo seriam produto da sociedade vienense no tempo de Freud, e não “eventos naturais” válidos em qualquer época.

Michel Foucault, Gilles Deleuze e Félix Guattari são os três filósofos franceses que serviram de base para esse questionamento da psicanálise. Em 1972, Guatarri e Deleuze escreveram juntos o livro O Anti-Édipo, criticando as idéias de Freud e seus seguidores por sempre buscarem um evento ou um trauma original para enquadrar o analisado numa certa categoria. Segundo os dois filósofos franceses, essa é uma visão extremamente reducionista do homem. O problema é: se já era complicado para um psicanalista vasculhar o mundo interior de uma pessoa, como lidar com o sofrimento pessoal de alguém alargando essas fronteiras para outras fatores como a política, a economia? Parece impossível na prática, não?

A médica e analista carioca Ana Rego Monteiro garante que é perfeitamente viável. Ela diz que, em vez de privilegiar, como na psicanálise, as relações familiares e a infância como uma das fontes mais importantes para o sofrimento de alguém, o analista tem que levar em conta que outras forças como a pressão no trabalho ou mesmo a exigência de se enquadrar num padrão de beleza não devem ter necessariamente um peso menor que aqueles fatores para desencadear uma depressão. “No lugar de classificar o paciente dentro de um quadro de doença psíquica, é preciso analisar as forças que estão atuando para produzir esse sofrimento”, diz a analista. Ela propõe, por exemplo, que o aumento de transtornos como a síndrome de pânico estaria ligado às mudanças econômicas, políticas e tecnológicas do mundo moderno. “É inútil querer curar alguém apenas com medicamentos ou tentando solucionar conflitos interiores”, afirma. “É preciso entender o conjunto de outras forças políticas que agem na mente dessa pessoa.”

Freud x Nova Era

Como um bom gastroenterologista, Wilhelm Kenzler cuidava com esmero do estômago de seus pacientes. Examinava, entubava, operava e indicava remédios para aliviar a dor. Até que um dia, quando fazia seu doutorado na Alemanha, na década de 1950, ele atendeu um homem com uma intrigante dor de estômago. Depois de um exame físico detalhado, o médico não achou absolutamente nada de anormal com o paciente – pelo menos até começar a conversar com ele. “Ele sentou e me contou sua história de vida”, diz Kenzler. “Quando me disse que queria largar sua mulher, 15 anos mais velha que ele, e que seu relacionamento com ela era típico de mãe e filho, percebi qual a verdadeira origem de sua dor de estômago.”

Depois disso, o médico decidiu estudar psicanálise para compreender melhor as chamadas doenças psicossomáticas – que produzem sintomas físicos mas têm origem na mente. “Me submeti a cinco anos de análise, fiz o curso na Sociedade Brasileira de Psicanálise, mas cheguei à conclusão de que o modelo freudiano era insuficiente como resposta às minhas inquietações”, diz Kenzler. Foi então que ele tomou uma decisão cada vez mais comum entre as pessoas que procuram alternativas para o divã: trocou Freud pela espiritualidade. “A psicanálise cuida apenas de uma dimensão do ser humano, mas há outras dimensões que precisam ser levadas em consideração”, diz.

Você já deve ter notado que esse tipo de crítica a Freud é totalmente diferente das feitas pelos neurocientistas ou por novas correntes da psicologia. Não se trata de acusar a psicanálise de falta de rigor científico ou de negligência diante do contexto social. Trata-se de criticá-la por ignorar a existência de outros estados transcendentais da mente que nem a teoria de Freud nem a psicologia ocidental e muito menos a psiquiatria levam em consideração.

“Ninguém tem dúvida de que a visão de Freud sobre o funcionamento da mente e o desenvolvimento da personalidade tiveram conseqüências extraordinárias”, disse à Super o físico austríaco e professor da Universidade de Berkeley, na Califórnia, Fritjof Capra. Considerado um dos mais famosos críticos da visão mecanicista da ciência ocidental, ele diz que a psicanálise freudiana terminou se fechando para as experiências religiosas e místicas. “Apesar de Freud ter se interessado pela religião e pela espiritualidade durante toda a sua vida, ele chegou a considerar a religião uma neurose da humanidade”, diz o físico. “Isso fez com que experiências dessa natureza passassem a ser enquadradas até mesmo como sintomas de uma psicose.”

A americana Suzan Andrews, monja de meditação radicada em São Paulo, diz que essa limitação da psicanálise freudiana não existe à toa. “De William James a Freud, a psicologia ocidental tem pouco mais de 200 anos”, diz Suzan. “Já a psicologia oriental estuda esses estados mentais há cerca de 7000 anos.”

Suzan, que passou 30 anos entre a Índia e a China estudando técnicas de meditação, diz que o método freudiano de cura pela fala não é o melhor caminho para tratar do sofrimento da mente. “Em vez de alívio, ficar falando de suas angústias despende ainda mais energia do corpo”, diz Suzan. “A meditação pode trazer resultados melhores que o tratamento verbal.” Mas isso, por acaso, não seria uma fuga dos problemas existenciais que a psicanálise traria à tona?

Ela garante que não. “Não se trata de fugir dos nossos conflitos internos”, diz Suzan. “Trata-se de fortalecer a mente para que você responda a esses conflitos com compaixão, até mesmo porque a origem deles não está necessariamente restrita a passagens da infância.”

A insistência em procurar a origem da infelicidade humana com base apenas nessa vida é, para as correntes espiritualistas, a maior limitação da psicanálise. Isso mesmo: para eles, boa parte do que você é hoje em dia é produto de inúmeras reencarnações.

É nisso que acreditam, por exemplo, as milhares de pessoas que lêem e seguem a filosofia budista do Dalai Lama, líder espiritual do povo tibetano. (Leia a reportagem de capa da

Super “A Vida Segundo o Dalai”, edição de agosto de 2001.) O psiquiatra americano Howard Cutler, que escreveu com o Dalai Lama o best-seller A Arte da Felicidade, resume assim a principal semelhança e a maior diferença entre o budismo e a psicanálise: “A semelhança é que as duas filosofias acreditam que há algo como o inconsciente que registra eventos do passado e moldam nosso comportamento”, diz Cutler. “A diferença é que, segundo o budismo, esses registros podem ter origem em vidas passadas.” Nesse caso, pouco adiantaria ir a um analista para compreender seus problemas atuais trabalhando com lembranças dessa vida. E talvez por isso exista cada vez mais gente buscando a felicidade e o auto-conhecimento na sua própria religiosidade – em detrimento do divã.

O futuro de Freud

É bem provável que a essa altura você já esteja pensando em como vai dizer a seu psicanalista que pretende suspender suas sessões. Mas será que os críticos de Freud conseguirão, realmente, enterrá-lo no passado? “Freud sobreviverá”, garante o historiador Peter Gay. Quanto às críticas de que a psicanálise não tem base científica e sempre arruma um jeito de ter resposta para tudo, ele rebate: “Esse ataque é extremamente simplista. Freud deixou clara sua aversão ao analista com respostas prontas para tudo. Só um irresponsável se comportaria dessa forma.” O problema é: quem pode definir quais parâmetros um terapeuta tem que seguir para ser chamado de psicanalista?

“Por enquanto, ninguém”, diz Márcio Giovanetti, presidente da Associação Brasileira de Psicanálise. Como a profissão não é regulamentada no Brasil, ele diz que qualquer um pode dizer que é psicanalista – mesmo que não tenha lido sequer um parágrafo da obra de Freud. “Esse é um dos motivos pelos quais algumas pessoas terminam descrentes quanto à psicanálise”, diz Giovanetti. “Mas é um absurdo pôr em dúvida a validade dos conceitos de Freud pela atuação de maus profissionais. Até porque isso pode ocorrer em qualquer profissão.”

Quanto à acusação de que Freud criou uma espécie de religião dogmática, os psicanalistas lembram que ele fez inúmeras revisões de suas teorias quando elas não se adequavam ao tratamento clínico. E mais: Freud teria premeditado o papel que as drogas poderiam ter, num texto de 1938, um ano antes de sua morte, quando escreveu que “o futuro poderá nos ensinar a exercer uma influência direta (na mente) por meio de substâncias químicas”.

O psicanalista e professor do departamento de Psiquiatria da Unicamp, Mário Eduardo Pereira, diz que é preciso acabar com essa idéia de que de um lado está a psiquiatria e, do outro, a psicanálise. “Assim como alguns psicanalistas podem ter uma devoção quase religiosa aos modelos de Freud, há um discurso não menos religioso de que os novos medicamentos podem resolver tudo sozinho.”

A historiadora e psicanalista francesa Elisabeth Roudinesco é uma das principais críticas desse discurso da psicofarmacologia. Em seu livro Por que a psicanálise?, ela lembra que nem os criadores desses medicamentos acreditavam que eles seriam uma espécie de pílula mágica para os males existenciais. O psicanalista Renato Mezan, professor da PUC de São Paulo, concorda: “Essa questão de que existe uma oposição entre a neurociência e a psicanálise está mal colocada” diz. “Não há nenhuma incompatibilidade entre as duas, ao contrário: drogas como os antidepressivos podem ajudar a criar melhores condições para que o paciente possa ser analisado.”

O historiador Peter Gay diz que, no futuro, um caminho promissor para o estudo da mente terá até que contar com a parceria de neurologistas e psicanalistas. “Já existem pessoas nesse momento que estão tentando formular uma nova teoria da mente que possa congregar o trabalho dos neurologistas com o dos psicanalistas”, diz Gay.

“O problema é que falta um grande inovador como Freud para unir a produção dessas diferentes áreas.” O psiquiatra Henrique Del Nero, da USP, diz que se a psicanálise não fizer isso ela se tornará apenas “uma forma sofisticada e cara de buscar autoconhecimento.” Mas, afinal, as idéias de Freud morreram ou não?

Talvez tenha sido o americano John Horgan, ex-editor da revista Scientific American e bastante conhecido pelo seu ceticismo, quem tenha dado a resposta mais perspicaz a essa pergunta. Em seu livro A Mente Desconhecida, ele diz que não, Freud ainda não está morto. Mas, em vez de atribuir essa sobrevivência à validade intrínseca das teorias do fundador da psicanálise, ele aponta uma razão mais singela para a persistência das idéias de Freud: “Se os modelos da psicanálise são deficientes, a neurologia também estaria longe, muito longe de desvendar o maior mistério da ciência: a mente humana. E, para aumentar o nível de felicidade de alguém que sofre, vale o que funcionar, seja a ciência ou não. É isso, aparentemente, que as pessoas estão dizendo aos estudiosos.